Nunca tive a ilusão de que Glee tivesse uma trama impecável. Aliás, acho que a própria série nunca quis enganar ninguém (a princípio): um roteiro simples, rápido, umas músicas pops aqui e ali, estereótipos de losers habitando os corredores da escola, um grupo de alunos – muitos dos quais, aliás, sem talento algum para a música – tentando superar problemas de popularidade, alistando-se (ou sendo coagidos a) ao coral da McKinley High School. O gênero é claro: comédia musical adolescente. E, se qualquer coisa nessa definição não o agrada, melhor nem ver. Já testemunhei muita gente incomodada com o sucesso de Glee simplesmente porque o conceito não lhe agrada. Poxa, eu não gosto de terror/nojeiras/zumbis, então não vejo The Walking Dead ou American Horror Story. Mas, dentro de sua proposta, Glee já foi boa. Sim, já foi. Triste realidade: não é mais.
Glee tinha um grande potencial. O piloto, que eternizou Don’t Stop Believing como hino da série, mostrava uma série despretensiosa e divertida, um roteiro que tirava sarro de seus próprios personagens e plots. Os personagens eram todos tão caricatos, as situações eram tão absurdas e tudo se encaixava tão bem! Ninguém se importava com o fato de que Sue Sylvester apresentava um comportamento psicopata incompatível a um educador (ou qualquer pessoa que se importe em ir para a cadeia); não havia problema no fato de Finn pensar ter engravidado Quinn só por tomar banho com ela; Kurt afetadíssimo e se identificando mais com as meninas era engraçadíssimo; Rachel mega bitch e egocêntrica era sempre imperdível. A falta de verossimilhança de muitas situações e a inexistente preocupação em impor o politicamente correto eram o que caracterizavam e davam a graça ao espetáculo. Oras, eles são losers, então nada como se referir a Tina e Mike apenas como “asiáticos” ou dar uma zoadinha com um cadeirante. Glee era ousada!
Então Glee começou a se levar a sério. As storylines, que antes eram dinâmicas beirando ao episódico, passaram a se arrastar. Os dramas que tantas vezes serviram e escape cômico viraram... Dramas verdadeiros. O Kurt, que era ótimo, passou uma temporada inteira lamentando sua vida de homossexual, e Ryan Murphy, espertíssimo como ele só, tirou ele do New Directions, criou uma nova escola, apresentou-nos a Blaine e originou o casal mais desprezível das três temporadas de Glee: Blaine e sua out of style gravata borboleta. E ele ainda reclama de levar raspadinha na cara. Acho é pouco.
O ponto é: Glee foi inteiramente descaracterizada junto com seus personagens. Agora a Rachel vive se sentindo culpada por querer o papel principal, coisa que a todo momento é pretexto para que a coitada saia dos holofotes como desculpa de deixar os outros brilharem também. Hoje em dia, se disserem para o Kurt ir cantar com as meninas, é capaz dele ficar ofendisíssimo e sair chorando da sala de ensaios. Aliás, cadê a amizade de Mercedes e Kurt? Falando em Mercedes, já cansou faz tempo dessa história de que ela quer ser o centro das atenções junto com a Rachel. Falando em Merdeces de novo, alguém comprou esse romance dela com o Sam? Eles estudaram coisa de um ano juntos e nenhuma faísca (o que deve ser explicado pelo fato de que ele estava mais interessado pela Quinn, talvez?), agora querem que eu aceite esse drama dos dois juntos. Sério? Sue não sabe se fica ou se vai, se ama ou odeia, se quer destruir o coral ou se quer ajudar o chatíssimo do Schuester a conquistar a Emma. Ou seja, a série conseguiu estragar a melhor personagem que tinha.
Nem as músicas salvam a série. Prova disso é que, antes de eu começar a escrever este texto, fui procurar em um dos últimos CDs algo em que me inspirar. Naveguei por músicas e mais músicas até conseguir encontrar algo que me empolgasse. E, quando o coral coadjuvante faz as melhores performances da temporada, algo está definitivamente errado. Alguém prefere ouvir Kurt e Rachel encenando sucessos da Broadway com que ninguém se importa (e não acho que o público-alvo da série sejam os amantes de musicais consagrados) ou assistir a Santana e Mercedes no delicioso mash-up de Someone Like You e Rumour Has It? Não há o que pensar, certo?
Minha mágoa com Glee é que a série me decepcionou. Apesar de todas as críticas sobre o roteiro e as situações, eu comprei a ideia do Ryan Murphy. Era simplesmente honesta e tinha sua dose de ousadia. Nunca me preocupei com a verossimilhança. Colocasse umas músicas legais que se encaixassem com um mínimo de história que eu me dava por satisfeita, juro. Mas não me peça pra levar a sério uma história que não se decide entre o caráter dos personagens, que esquece tramas e cria divergências dentro de si mesma. Não me peça para levar Glee a sério, porque essa é demais até para mim. Vou é ver Smash, porque pelo menos lá os cenários luxuosíssimos são usados como metáfora da idealização dos artistas, não como recurso de coral escolar que vive chorando miséria até para ir a mais uma de suas trocentas regionals.