Relato de uma observação antropológica numa experiência psicossinestésica¹ ²

Ônibus são, de fato, uma fonte inesgotável de observação social, pelo menos em Curitiba, onde pessoas das mais variadas divisões urbanas optam pelo transporte público. O resultado de todo esse papo de planejamento urbano “modelo” no país acaba possibilitando esses encontros curiosos e elucidativos.

Normalmente eu evito contato com esse mundo multifacetado e prefiro meu autismo consciente. Mas, às vezes, esse universo peculiar existente dentro de aglomerações chamadas “ônibus biarticulados” (que é coisa linda de turista ver, já que eles não precisam estar dentro de um diariamente) extrapola as fronteiras de qualquer distração que sirva pra ludibriar a realidade. Aí, amigo, não há livro empolgante ou música boa ouvida no último volume com fones atochados no ouvido que segurem a voracidade do coletivo. Foi isto que me ocorreu dia desses.

Acho que já devem ter notado que nós percebemos a presença do outro através de nossos sentidos. Dentro dos ônibus coletivos, é melhor ignorar o do tato ou você vai sair dando tabefe na cara a rodo, afinal é impossível evitar o contato com a massa - alguns sabem disso e se aproveitam para saírem ilesos. Pode-se desviar, passar com jeitinho, mas o (populacho) povo vai ao seu encontro. Vamos ignorar o paladar neste relato, afinal ele não é de grande utilidade pra ninguém neste contexto, a não ser que você seja o faminto filho da mãe que abre salgadinhos fedorentos ou compra aquela pipoca com bacon gordurosa na Praça Rui Barbosa (substitua o nome próprio por qualquer aglomerado de pontos de ônibus, bancos de praça e gente jogando milho para os pombos que houver na sua cidade).

Restam-nos, portanto, apenas três alternativas - tato e paladar já foram. O curioso dos fatos que se seguem é que tentei me utilizar dos três para desviar minha atenção da sucessão de bizarrices que contemplei.

Salvo em casos de férias escolares em que eu vou à aula e que, portanto, os ônibus estão vazios, o hábito é que eu permaneça em pé mesmo, porque meu caminho até a PUC é relativamente curto e também porque aquele raio de Interbairros V (saca o nome promissor) é muito cheio, então nada a ver eu ficar desesperada por um banquinho. Bem feito pra mim e meu sedentarismo, que, neste dia, procurando um cantinho em que eu pudesse segurar, avistei um banco vazio no fundo e não resisti a ele. Pequei: fui em direção ao lugar desocupado e me sentei. A esta altura, já estava com minha música ligada e meus fones prontamente em atividade (acredite quando eu digo que evito a sociedade. Pois é!). Então, no próximo ponto, eis que entra um grupinho de 4 ou 5 adolescentes e se dirige até onde eu estava e sentam meio espalhados: uma garota ao meu lado direito, outra na ponta esquerda, e outra na frente desta. O garoto que as acompanhava permaneceu a minha frente, já que à esquerda e à direita seu grupinho formou a frente de combate. Agora começa o drama propriamente dito.

Primeiro, o mentecapto que ficou em pé começou a falar alto, rir, fazer piadinhas e todas as coisas típicas de um adolescente normal quando este se encontra em bando. Mas, aparentemente, as garotas não estavam tão animadas quanto ele, pois não riam de suas piadas e ainda soltavam expressões de insatisfação discretamente. Acho que ele era o mala que teve que ir pra casa da amiga fazer trabalho porque algum professor FDP decidiu os grupos pelos alunos. Ou qualquer coisa do tipo. Neste ponto eu já tinha aumentado o volume da música a um nível que eu normalmente não ouço e, ao mesmo tempo, que não me deixaria surda no final do trajeto. Então uma pessoa à direita desce e o enjeitado jovem risonho senta-se ao lado da amiga, sacando prontamente da mochila um pacote de bolacha (ou biscoito, que eu acho horrível) e oferecendo para cada uma de suas acompanhantes. Haja volume no iPod. Neste momento em que meu campo visual foi invadido pelo espalhafato alheio, tento me concentrar apenas na música (ou podcast, não me lembro). E como isso só não bastava, tentei encontrar algum ponto fixo em que concentrar meu foco de visão para não ficar com raiva de braços passando na minha frente oferecendo guloseimas para meio mundo. Eu, que tenho um poder de concentração ótimo quando me interessa, consegui desviar minha atenção para prosseguir a viagem.

Um certo movimento anormal mesmo para aquele veículo from hell inicia-se e minha atenção se volta para um outro grupinho de amigos logo em frente, sentados nas cadeiras dispostas ao contrário do sentido do ônibus (deu pra entender?). Digo, dois estavam sentados, uma estava meio que trepada desajeitadamente em frente à garota sentada e um quarto elemento estava em pé no degrau da porta (ainda falo sobre comportamento inadequado dentro da coletividade). A menina antes sentada levanta-se e meu sexto sentido grita “ALGUMA COISA VAI COMEÇAR A FEDER, OLHA A CARA DESSA MALUCA!”. Realmente, a menina parecia estar acordando de um longo coma em que não existia escova de cabelo, as mechas desgrenhadas denunciando o estado subumano (essa reforma me mata de desgosto). A menina-zumbi se dirige à escada e senta-se com a cabeça entre os joelhos, e já dá pra adivinhar o que estava se passando, certo? Adolescentes, sexta-feira à noite, com cara de cu e passando mal dentro do ônibus? Cachaça. E a morfética ainda senta num banco de costas pro sentido do tráfego. Ah, tá, e isso pode dar boa coisa? Não.

Minutos depois, a garota-filha-duma-égua-manguaceira resolve golfar ali mesmo, na escada do ônibus, onde minutos depois eu teria que pisar para descer no meu destino. Como tudo que é ruim ainda pode piorar, o cheiro que se alastrou confirmou para todos os presentes num raio de 5 metros que ela tinha, realmente, bebido como se não houvesse amanhã. Os amigos, com o constrangimento minimamente exigido de alguém nesta situação, acham a solução para amenizar os efeitos do porre da colega. Tem coisa mais esperta que borrifar, num ambiente fechado e tomado pelo cheiro fétido da festinha alheia, um vidro de Rexona Teens? Ma-ra-vi-lha! Troféu joinha pra eles.

Mais uma vez, tento distrair minha atenção. Meu nariz protestando contra aquela mistura de fragrâncias, meus olhos se recusando a acreditar no que viam: uma juventude que circula pelos ônibus públicos às 19 horas totalmente embriagados. Para encerrar o espetáculo de forma brilhante, o garotinho mala oferecedor de lanchinho volta à cena. “Do you understand what’s happening?”. What the fuck? O intelecto em pessoa queria comentar a desgraça alheia e resolve fazê-lo em inglês nível Wizard Book 2, certo de que apenas ele dentro daquela bagaça entenderia essa frase complexa. Os absurdos continuam e é um festival de pronúncia horrenda, com lacunas preenchidas pelo português na falta do vocabulário estrangeiro. As amigas, justiça seja feita, não estavam incentivando aquela atitude, e pareciam tão constrangidas quanto os amigos da beberrona, que neste momento olhavam para o iludido bilíngue, certamente entendendo a intenção do comilão.

Desgraça completa. Tentei olhar para o lado e ignorar a nojeira em frente, tentei não pensar no odor daquela mistura bizarra de perfume e vômito, tentei me focar na música, apenas na música, ÉRIKA VOCÊ NÃO ESTÁ VENDO ISSO, NÃO ESTÁ SENTINDO ISSO, NÃO ESTÁ OUVINDO NADA DISSO. Mas não sou monge nem o Daniel San, não tenho um poder de meditação tão inatingível. Inglês primário gritado no meu ouvido para que a colega do outro lado pudesse entender foi demais. Ainda bem que não demorou muito e o ônibus chegou ao portal da faculdade, onde desci, alegre de estar finalmente indo para a aula. E como eu já estava bem de tragédias neste dia, poupei-me de mais uma. Andei um pouco até a frente do ônibus e desci na porta mais próxima, deixando a garota em paz com sua rejeição etílica.



¹ Ou “Crônica do Interbairros V”.

² A autora prefere “psico-sinestésica”, mas a reforma ortográfica manda duplicar a letra caso o prefixo termine em vogal e a palavra seguinte for iniciada por ‘r’ ou ‘s’.

9 comentários:

Anônimo disse...
15 de setembro de 2009 às 15:56

Adorei, Érika *o* Como tratar de um assunto tão estranho e vomitadamente nojento como esse com classe.

Não vou dizer parabéns nem nada do gênero. Você sabe que é boa *o*

Mila Linhares disse...
15 de setembro de 2009 às 18:33

Amei! Nem precisa dizer que você escreve muito bem! Ri muito da sua narração e me identifiquei com algumas partes, rs...

Parabéns! Vou acompanhas sempre! ^^

Pedro Witchs disse...
15 de setembro de 2009 às 21:33

*----*
Eu já teria morrido de medo no meio do caminho. Fato.

Unknown disse...
16 de setembro de 2009 às 12:22

Deu :) Então, como eu ESTAVA DIZENDO. Eu odeio quando eu a pessoa não está sentada na janela e não me deixa sentar. :( às vezes, tenho que ser até mal educado rs

Breno Pires disse...
16 de setembro de 2009 às 14:38

Muito bom
ri muito do jeito como vc descreveu as coisas, uma viaso muito comica das coisas esquisitas do cotidiano xD

Paulo Sérgio Brito disse...
17 de setembro de 2009 às 16:56

Aindo sonho em ler um livro, que contará as diversas situações que ocorrem dentro dos õnibus.
Adorei, Érika;D

Lay disse...
18 de setembro de 2009 às 13:56

Já presenciei cada comédia grega em ônibus, que me indentifiquei com o post. Se bem que essa está mais para tragicomédia. hahaha.

Ri muito nessa parte: "O intelecto em pessoa queria comentar a desgraça alheia e resolve fazê-lo em inglês nível Wizard Book 2, certo de que apenas ele dentro daquela bagaça entenderia essa frase complexa."
Em tempos de globalização, mandar um “Do you understand what’s happening?” é muita burrice!

Nanda disse...
21 de setembro de 2009 às 16:46

As pessoas nas cidades com o clima CWB (é, li de cima pra baixo) andam com rexona teens na bolsa? Em spray? Porra, nem aqui no nordeste calorento as pessoas fazem isso. vou andar de ônibus quando for aí não, hem!

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