Gosto é igual braço...

... Uns têm, outros não. Eu gosto de dizer essa piadinha de humor afrodescendente sempre que possível quando o assunto é divergência de gostos¹, mas não o suficiente pra ela ficar repetitiva demais. E, sendo sincera, nem acho que isso seja verdade absoluta na maioria dos casos.

Acabo de sair de uma noite corrida em que nós do Pipoca Combo cobrimos o Globo de Ouro e estou ouvindo a deliciosa e tranquilizante trilha sonora de “Onde Vivem Os Monstros” (aliás, ela é repleta de vozes infantis, depois pesquisarei mais sobre). Se contar ainda que somente nessa semana que se passou eu me obriguei a assistir “Filhos da Esperança”, tudo se encaixa perfeitamente. O filme, do gênio Alfonso Cuarón, retrata um mundo em que as mulheres não conseguem mais ter filhos e o ser humano mais jovem, um garoto de 18 anos, morre. É assustador observar o caos que isso pode causar, a tristeza de um ambiente sem o barulho das crianças, coisa em abundância na trilha do primeiro filme. Mas isso são apenas divagações que não acrescentarão muito no que eu quero dizer.




Você não está cego. Clique na imagem para ser capaz de ler.


Eu nunca havia raciocinado muito em cima da bagagem de significados inerentes à palavra “cultura”. Pra mim, e acredito que pra maioria da pessoas, isso remetia tão somente à intelectualidade, ao bom gosto, ao amor à boa música, aos bons filmes, aos bons livros e à quantidade de conhecimento acumulada por alguém durante sua vida. Descobri que é muito mais. Poderiam ser citados aqui vários estudiosos que me dariam mais credibilidade e que concordariam comigo, mas deixo as discussões acadêmicas para a sala de aula e digo apenas o que eu penso, por enquanto são apenas achismos adquiridos com muita observação e tempo. Cultura nada mais é que todo o conjunto de costumes, crenças, hábitos, folclore, histórias, comportamento (...) de uma sociedade. Isso inclui a novela helenística de Manoel Carlos, a música do filho desafinado do Fábio Júnior e, para o meu profundo desgosto, os livros da Stephenie Meyer. Cultura é um aglomerado de gostos, compartilhe-os você ou não, e não adianta fazer cara feia.

Estou enrolando e ainda não cheguei aonde eu pretendo. Então vamos direto ao assunto. Como sabem meus queridos leitores (“a” blogueira famosona, né?), eu me aventurei pelo mundo da comunicação em vez de sossegar no meu canto de diplomada em literatura e língua. Assustadoramente, porém, eu percebo que muitos dos meus colegas de pós-graduação – formados, em sua maioria, na própria comunicação – quer tudo, menos se comunicar. Por quê? Vejamos. O que pretende um profissional da comunicação que simplesmente se recusa a entender por que no país as novelas fazem tanto sucesso? Como será capaz de entrar em contato com seu público o comunicador que faz questão de passar longe do que o povo lê? Querem eles, então, serem os jornalistas e publicitários da elite? Noto uma certa síndrome underground nesse pessoal: ao mesmo tempo em que muitos gritam pela difusão de algo supostamente melhor, fazem questão de gostar daquilo que poucos conhecem e reclamam quando o que é “deles” se populariza. Juro que ainda me angustia perceber tanta gente que pretensiosamente se denomina comunicador fazer tanta questão de se alienar tão fortemente do mundo real. Há quem defenda com veemência que o espectador da novela das 20 horas é formado apenas por donas de casa sem maiores distrações na vida e capacidade de apreciar bons livros.

A especialização que estou cursando se chama especificamente “Comunicação, cultura e arte”, mas a preocupação com a arte é tanta que a concepção das outras duas palavrinhas está totalmente deturpada. E não são apenas eles a cometerem este erro. Falo como alguém que já esteve dos dois lados dessa eterna guerra entre o erudito e o popular. Quando criança, gostava de muitas “porcarias” que não acrescentam nada a ninguém; na adolescência, achava que tinha descoberto a América porque ouvia MPB, sem perceber que eu não passava de uma adolescente pedante. Apenas na faculdade de Letras eu fui entender: uma coisa não anula a outra.

Sim, porque nós temos a tendência burra de achar que apenas um dos extremos vale. Se eu gosto de coisas populares, o erudito não é bom, é coisa de gente metida a cult e careta; se eu tenho um gosto refinado e meu ambiente me permitiu entrar em contato com coisas mais elaboradas, o popular é de segunda classe, coisa de gente inferior e de mau gosto. Tenho dois autores preferidos: Machado de Assis (ops, por falar nisso, eu devo a continuação de um post) e J.K. Rowling. Os dois não poderiam ser mais antagônicos. Machado é um clássico brasileiro, um gênio das letras incomparável a qualquer outro escritor conceituado no país (talvez apenas Guimarães Rosa rivalize com ele à altura). Rowling escreve fantasia infanto-juvenil, sua trama é baseada em uma receita que ela não larga, seus personagens, em sua maioria, não são aprofundados e muitas das coisas que se leem ali são previsíveis. Então o que me permite gostar de ambos? Uma coisa é arte, outra é entretenimento.

Repito: uma coisa não anula a outra². Não é porque leio clássicos que isso me impede de ter um escape, um mundo pra onde fugir, onde eu me permita baixar um pouco a guarda da “crítica literária” que existe dentro de mim. E não é porque eu leio Harry Potter que isso me torna incapaz de apreciar Shakespeare e que eu não devo ir atrás de coisas mais elaboradas. Apenas entendo que cada um tem seu momento e seu objetivo. Quando eu estava na faculdade, cada livro lido passava automaticamente por uma análise formal inconsciente, por algum tempo eu me esqueci de como era ler alguma coisa sem pensar em métrica, estrutura literária, construção de personagem, tramas secundárias... É uma escravidão normativa que, apesar de servir para meus estudos, tira um pouco o gosto de ler algo descompromissadamente.

Então, voltando ao início, por que eu citei filmes mesmo? Ah, porque eles passam igualmente por uma crítica ferrenha de quem se preocupa demais em analisar cada aspecto cinematográfico num pente fino. Os clássicos são importantes, afinal são clássicos por algum motivo (o principal é que, época após época, eles continuam dizendo algo ou foram importantes para se chegar a um aperfeiçoamento de técnicas), mas não é bom esquecer a diversão. Não pense que estou propondo “desligar o cérebro”, afinal ele não vem com controle remoto e nem é uma peça Lego pra ser removido de sua caixa craniana ao bel prazer. Mas, desde que algo não insulte a inteligência de ninguém - coisa que está longe do “intelectual”, que fique claro -, não vejo motivo que impeça alguém de admitir que gostou de algo quando este algo lhe pareceu divertido.

Profundas desculpas pelo texto e pela filosofia paulo-coelhiana, mas a palavra é equilíbrio. Ser inteligente não é sustentar a máscara altruísta pseudointelectual que ilusoriamente nos assegura um degrau acima na evolução humana, mas sim saber dosar conhecimento, intelecto e cultura, coisas distintas e independentes. Uma coisa sem a outra vira uma mala com rodinha estragada. Veja BBB, mas não ache que isso é uma experiência de observação do comportamento humano – é apenas um programa e, a não ser que você seja um dos participantes, não ganha nada com isso. Não veja, mas também não se iluda achando que, por isso, passou duas vezes na fila de neurônios. Luz, luz, luz. Equilíbrio, equilíbrio, equilíbrio. Além do mais:




O BLOG INSIRA ADVERTE: bancar o crítico especialista chato a todo momento pode afastar as pessoas de você.




¹ Que fique claro: o texto trata de gostos, não da discussão de fatos. Ex: Você pode gostar do Paulo Coelho, mas é fato que ele é ruim
.
² Aqui abro uma exceção para Crepúsculo: quem acha isso bom – não quem gosta, veja bem - não pode entender de literatura.

14 comentários:

João Rodrigo disse...
18 de janeiro de 2010 às 09:27

Outro dia eu cruzei com um indivíduo na rua que me disse que a Saga Crepúsculo era melhor que Percy Jackson. Vai entender o que se passa na mente de uma criatura dessas...

Enfim, ótimo post. Adorei mesmo!

Paulo disse...
18 de janeiro de 2010 às 09:40

Gostei muito, Érika. Colocou aí basicamente tudo o que eu penso.

Acho que é a primeira vez que leio o teu blog, beijos.

Zirpoli disse...
18 de janeiro de 2010 às 09:42

"máscara altruísta" HAHAHAHAHA


Genial!
As notas então... HAHAHA Paulo Coelho é ruim. Crepúsculo sucks. Period.

Mas o melhor mesmo é a MENSAGEM PRA VIDA que o texto carrega. Ainda mais pra todo mundo que lê e sabe do contexto. risos.

Beijos, Love ya.

Lily Zemuner disse...
18 de janeiro de 2010 às 09:59

Eu respondo com uma frase sua que li no twitter: Ver BBB não te faz mais burro, mas não ver também não te faz mais inteligente. E acho que não é preciso dizer mais nada, a não ser que concordo absurdamente com tudo o que você escreveu neste post.

Beijos.

P.S.: Vi esse filme das mulheres que não conseguem mais ter filhos há um tempão e não conseguia me lembrar do nome de jeito nenhum. Thanks, prima. =)

Arthur Melo disse...
18 de janeiro de 2010 às 10:27

Viram? Quando eu digo que Avatar não foi tão majestoso pra mim eu quero dizer que simplesmente achei fraco. Não estou querendo bancar o intelectual. E olha que eu vi sem o olhar cri-crítico ligado. Como mero espectador, simples membro da platéia, não achei empolgante.

Larissa R. disse...
18 de janeiro de 2010 às 10:43

Acho que é a primeira vez que leio o teu blog, beijos. ²

...e gostei do que li, você está absolutamente correta..só porque determinada coisa é popularizada ela é ruim ou deixa de ser boa..claro q existem lá suas exceções.

vou passar aqui mais vezes ;)

Fabio Martins disse...
18 de janeiro de 2010 às 11:18

Olha, tô aqui pela terceira vez e haverá mais vezes. Que postagem ótima... É esclarecedor, não? Eu sempre que imaginava você, formada em literatura, gostando de Harry Potter, não conseguia entender, sério mesmo. Alguns dos ótimos professores de literatura falavam muito mal da série e eu não conseguia discordar deles... Mas, tá aí um ótimo argumento. Gosto é igual a braço! haha.

Vou divulgar esse aqui para algumas pessoas. lol :*

v. disse...
18 de janeiro de 2010 às 12:15

Arthur [2]

_

Gostei, gostei. Disse tudo o que eu penso e que jamais conseguiria dizer.

A propósito, "Filhos da Esperança" é uma baita porcaria.

Érika Zemuner disse...
18 de janeiro de 2010 às 12:21

Souza, eu achei meio chatinho o filme em si, mas a cena final do tireoteio no prédio e deles saindo é linda e muito bem feita. Prefiro guardar essa cena em vez de me apegar ao "meio chatinho" :)

Anônimo disse...
18 de janeiro de 2010 às 12:52

Ótimo post, e retrata uma situação não só existente, como muito real.

É realmente uma "mensagem" para se ler, analisar, e guardar.

E quanto ao fato de ler Paulo Coelho, Crepúsculo ou assistir BBB, eu já tive experiências com todos os itens citados, e não continuei porque, além de ser ruim, não me atrai. sahuioaheiuhauie

*ainda refletindo sobre o post*

Beijos.

Maria Clara disse...
18 de janeiro de 2010 às 17:42

Nossa, acho que não consigo acrescentar nada ao que você escreveu. Realmente, síndrome do underground dá uma certa aparência de superioridade. Quer dizer, gostar do pouco conhecido parece mostrar que você compreende o que as massas não conseguiram compreender. E como acham que as massas são burras...

Pedro Witchs disse...
28 de janeiro de 2010 às 19:41

Érika *----*
Teu texto é quase um ensaio do campo teórico dos Estudos Culturais! Babei aqui. Já leu "Nunca fomos humanos"? É um livro dos Estudos Culturais voltado para área da comunicação. É muito bom. Se jogar no google, tu acha pra fazer o download do livro. A referência é:

SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Nunca fomos humanos: nos rastros do sujeito. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

Destaque pro texto de Elizabeth Ellsworth "Modos de endereçamento: uma coisa de cinema; uma coisa de educação também".

;*

Breno Pires disse...
4 de fevereiro de 2010 às 07:41

adorei o post
vc escreveu exatamente o que eu penso, so que com palavras mais bonitas do que as que estao na minha cabeca

Rebeca disse...
6 de fevereiro de 2010 às 06:07

Sempre arrasando nos textos.Amei e vou refletir mais sobre.

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